quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Rio ou esgoto?

Os meus sentimentos relativamente a Rui Rio têm variado de forma, diria, climatérica. No Inverno era contra, no Verão mais ou menos a favor. Confesso que logo após a conquista da Câmara a Fernando Gomes (sim, o tal que faz batota com o cabelo…) antipatizava profundamente com o homem, fosse pelos seus tiques de betinho do Colégio Alemão, fosse pelos seus tiques salazaristas. Com a chegada dos popós e dos aviões de corrida mudei a minha opinião. Passei a apreciar o seu espírito de iniciativa e a apreciar-lhe o rigor. Em alguma medida até o admirava por ter conseguido meter no bolso a mafia que dominava a seu bel-prazer a Câmara do Porto. E atenção!, não é tarefa fácil dobrar engenheiros, arquitectos e quejandos habituados a mil e uma tropelias. Durante os últimos anos, de uma crise crescente, a sua voz fez ouvir-se no Terreiro do Paço, insurgindo-se contra as mil e uma diatribes do Poder Central, mesmo que este fosse (como é) laranja. Cheguei mesmo a pensar que Rio poderia alcandorar-se ao poleiro do PSD quando e como bem entendesse. Ainda bem que não o fez. Nunca percebi bem as palavras azedas trocadas entre as margens do Douro. A cada ideia lançada por Menezes (sim, porque o homem tem ideias), Rio torcia-se no sofá e destilava veneno sobre o correligionário político. Inveja do carisma do vizinho? Um carisma que o presidente da Câmara do Porto nunca teve nem terá, pois tem cimentando uma imagem cada vez mais salazarenta? Não sei. Nos últimos meses torci cada vez mais o nariz cada vez que ouvia falar de Rio. Fosse pela demolição do Aleixo e dos negócios imobiliários que lhe estão associados, fosse pelos despejos de uma gente que não fez mal a ninguém e que, pelo contrário, apenas se pretendia substituir às obrigações do Estado no vazio deixado por este, a verdade é que comecei a sentir um desconforto crescente. Agora, Rio foi longe de mais. Revelando o mais completo despudor e falta de sensibilidade, atingiu o paroxismo da maldade ao mandar despejar um casal de ciganos do Bairro do Cerco que, de seu, apenas têm seis fedelhos menores agarrados às saias da mãe. Fê-lo na sequência do mais estrito sentido da legalidade? Não. Fê-lo porque ficou furioso quando o caso foi denunciado no Público. Tenho para mim, cada vez mais, que um rio que só serve para fazer despejos não passa de um esgoto.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

As trombas da malta da CP

Poucas coisas me irritam mais do que pagar (e no caso vertente pagar bem…) e ser mal atendido. Para mal dos meus pecados, isto acontece de forma recorrente com o pessoal da CP. Piores que eles só mesmo os parasitas das Finanças… Já se sabe que a malta da CP tem muitas caras – senhoras da limpeza, operários, pessoal administrativo, revisores, maquinistas, os senhores das bandeirinhas… todos, porém, têm uma coisa em comum: são uns trombudos que dá dó. Das múltiplas espécies da CP, há duas que me chateiam em particular – aqueles seres super-inteligentes que estão nas bilheteiras e os revisores, ou picas, como a malta carinhosamente os designa. Comecemos pelos primeiros. Desconheço (nem estou interessado em saber…) qual a categoria profissional que designa a malta das bilheteiras – pessoal administrativo?, técnicos de vendas?, lixo excedentário? Bom, passarei a designá-los, para simplificar, como bilheteiros. Vejamos. Se porventura algum cliente da CP tiver dúvidas quanto a determinado trajecto ou se há composições alternativas às sazonais greves, os bilheteiros têm uma fórmula mágica: “Dirija-se às Informações”; se for confrontado com o facto de as ditas não existirem, rosna entredentes: “Terá de ir à estação tal e tal…”; questionado quanto à razão de não prestar quaisquer informações (as mais das vezes simples…), lança um olhar furibundo e uma última tirada: “Isto aqui é para vender bilhetes…”. Poder-se-ia pensar que o estado de espírito destes seres superiores, tão inteligentes quanto sagazes, varia de estação para estação. Puro engano. São todos feitos da mesma massa – 9º ano incompleto, naturais das berças, QI 75. Passemos aos nossos amigos picas. Iguais no perfil aos primos bilheteiros, têm porém uma particularidade que os distingue: o corpanzil. Mistura de dogue argentino e de vaca bravia ribatejana, controlam carruagem após carruagem, alicate numa mão e a outra livre, pronta a defenestrar o primeiro incauto que se lhes atravesse no caminho. A particularidade que acho mais espantosa nos picas é que são mudos. Controlam 50 pessoas por carruagem sem uma palavra, um murmúrio sequer. Para os mais distraídos ou os que adormecem, recorrem ao simpático toque no ombro. Se não resultar, o clássico empurrão revela-se remédio santo. Em suma, adoro a malta da CP. Fazem-me lembrar os defuntos funcionários da Rodoviária, que de greve em greve e de trombas em trombas acabaram a trabalhar para a Scotturb a troco de 600 euros por mês. Os poucos que lá estão, porque os outros foram despedidos.

domingo, 12 de agosto de 2012

Soldadinhos de chumbo

Felizes dos que caem para sempre. Koji Wakamatsu explica porquê. Sem ambiguidades. Simplesmente porque é assim. Limita-se a contar-nos a verdade das coisas. Neste caso da guerra. Num filme notável, intitulado “O Bom Soldado”, o cineasta japonês conta-nos a história de um tenente do Exército Imperial que regressa a casa mutilado durante a II Guerra Mundial. Ferido com muita gravidade na China – não na sequência de actos heróicos mas após ter praticado violação e assassínio -, o tenente Kurosawa (numa interpretação notável de Shinobu Terajima) é depositado com todas as honras militares no lar, onde a mulher (Keygo Kasuya, num papel formidável) o recebe entre o espanto e o horror ao verificar que o marido não tem pernas, nem braços, que não fala, está surdo e terrivelmente deformado. Totalmente dependente da mulher, mesmo para as coisas mais íntimas, como urinar, defecar ou fazer amor (por esta ordem), Kurosawa (sim, não ficou impotente) é exaltado por todo o Japão, que louva o seu sacrifício em nome do país e do imperador. Ele é o bom soldado, sendo elevado à categoria de deus da guerra. O casal Kurosawa, endeusado em vida, sofre em silêncio com a sua miséria. Wakamatsu leva os japoneses a interrogarem-se sobre os sacrifícios feitos em nome do Japão e do imperador. Durante seis anos o tenente é forçado pela esposa a redimir-se de todos os pecados. Da violência, da gula e da luxúria. Por fim, opta pelo suicídio, afogando-se num charco contíguo à casa para onde conseguiu arrastar-se. “O Bom Soldado” (muito melhor tradução seria “O Deus da Guerra”, pois Kurosawa nada tem de bom…) obriga-nos a reflectir sobre a guerra, que Wakamatsu eleva à sua real condição de Mal Absoluto. Não há heróis, não há causas. Apenas um Mal imenso que permanece escondido em nome de obscuros interesses nacionais. Não nos deixemos iludir. Casos como o do tenente Kurosawa existiram com abundância em todas as guerras. E continuam a existir. Dos mais de 33 mil jovens soldados americanos feridos no Iraque e no Afeganistão, cerca de um terço são grandes mutilados (desmembrados, cegos, impotentes), escondidos nos corredores do Walter Reed Army Medical Center, nas cercanias de Washington, antes de serem enviados para casa. Wakamatsu é impiedoso. Brutal. Mas é honesto. Porque a guerra é assim. Sempre foi. Felizes dos mais de 6700 americanos que caíram para sempre no Iraque e no Afeganistão. Que regresso a casa vai ser o dos mais de 10 mil grandes mutilados jovens americanos? Em nome de quê? Por que não contam a sua história? E a dos outros 70 mil (reconhecidos oficialmente) que sofrem de stress pós-traumático e que jamais terão uma vida normal? Por que nos mentem? Por que não contam a verdade? Por que não filmam os corredores do Walter Reed Center? Diz-nos e bem Wakamatsu: se dissessem a verdade sobre o que é a guerra todos fugiriam dela a sete pés. Não haveria mais soldados e não haveria mais guerras.

sábado, 28 de abril de 2012

Ainda haverá amanhã?....

Está um Abril frio. Acho que Abril é sempre assim – húmido e frio. Mas este ano é diferente. Para pior. Muito pior. Estou numa esplanada de Brito Capelo a ruminar o jantar. O vento trazido pelo mar traz-me memórias do passado. Do que era esta rua há 30, 40 anos: pujante, cheia de gente e de vida, rica. Naufrago naquele constante cheiro a ensardinhado, nas operárias das conserveiras, no colorido das flanelas dos pescadores, na imensidão de peixeiras. Nada disso existe. Tudo foi destruído. Com uma simples assinatura de alguém acima de sério vindo dos Algarves e acampado em Belém. Sinto as mãos contra o espaldar da cadeira. Sinto o frio do metal, temperado pela humidade. Sinto raiva. Olho em volta. Devagar. Primeiro para a esquerda, depois para a direita. Entendamo-nos. Não quero atravessar a rua, mas isto é uma esplanada, embora seja uma esplanada ranhosa e eu esteja rodeado de ranhosos. Brito Capelo é assim – triste de dia e miserável à noite. Está a desfazer-se, não como um tumor que nos corrói aos poucos, mas como aqueles que nos trucidam de uma forma galopante. Todas as semanas as belíssimas fachadas dos anos vinte parecem cada vez mais velhas, os prédios mais feios. Os telhados abrem-se, os vidros partem-se, as paredes caem. E ficam assim. Em cacos. Os dias acordam tristes. Com lojas que fecham, com mais mendigos. E depois há a noite. Que me persegue. Uma após outra. Como esta. Ao meu lado um casal jovem. Muito jovem. Saíram há minutos de uma das pensões miseráveis que enxameiam agora a rua e onde têm tecto pago pela Segurança Social. Com eles um fedelho. Ainda no berço, mas que promete ser tão ranhoso como eles. A conversa do costume – as coisas estão más e não há trabalho. Como se alguma vez tivessem estado boas para eles ou se tivessem algum dia provado o sabor amargo do trabalho. Como se o fedelho algum dia pudesse seguir os estudos, essa coisa dos ricos. Percebo-lhes as prioridades – ir à Segurança Social para que lhes dêem dinheiro para pagar a luz, que o dinheiro que receberam do Estado não chegou nem para a droga. Adivinho-lhes a estratégia – levarem o fedelho mal embrulhado, que quanto mais miséria melhor. A vida é mesmo assim. Bebo o último golo do café. Saem mais arganazes das sarjetas. Aqui e ali serpenteiam pela rua, desengonçados. Ao encontro da próxima dose. De noite pode-se andar. Ninguém nota. Agora chove. Uma chuva miudinha. Gélida. À minha frente passa gente. Os ratos enfiam-se nos buracos. Fogem daquela mulher acabada de entrar nos trinta, com ar de pessoa normal. Das que ainda têm trabalho e comer em casa. Atravessa a rua com ar decidido e pára num umbral entre lojas. Baixa-se e fala com um dos rafeiros. Primeiro baixo e depois mais alto. Percebe-se que são conhecidos. Talvez familiares. Ele está zangado. Ela tenta explicar-lhe as razões por que não cabe no seu tecto. Ele fala-lhe dos sonhos desfeitos, das esperanças perdidas, de um país sem futuro. Da viagem que vai fazer no barco. Ou não. De ter o mar em frente e não partir. De vergonha. Por isso se esconde na noite. Mais à frente, casais de jovens ranhosos discutem. À porta de um café ranhoso. Eles atiram-lhes a cerveja que emborcam. Elas fogem, despedindo insultos. Passam por mim a cheirar a perfume barato. Ar reles, zangadas, cabelos escorridos de ratas de esgoto. Resigno-me. Os que prestavam partiram. Um milhão numa década. Levanto-me. Mais uma noite em Brito Capelo. Até amanhã. Se ainda houver amanhã.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Fantasmas


Meia-noite. Um vento forte mistura-se com a chuva gélida. Parece que se aliaram para me impedir de chegar depressa ao metro. Não importa. Daqui a pouco estarei numa carruagem quente e duas horas depois, a seguir a um jantar tardio, aguarda-me o aconchego dos lençóis térmicos e uma madrugada de conforto. Só mais um esforço. Mártires da Liberdade está a chegar ao fim e a Praça da República está ali, já ao virar da esquina.

Uma pequena recta e depois é a descer até à Trindade. E de repente ouço-os. Antes de os ver. É sempre assim, todas as noites. Discutem, como de costume. Elas com eles. Voz de vinho de pacote, do mais ordinário. Eles respondem, no mesmo tom. Adivinho-os num vislumbre sob as arcadas. Estugo o passo. Vejo-os, mesmo sem os ver, embrulhados nas enxergas. Cada vez são mais. E mais jovens. Fecho os olhos e sinto uma vergonha que me mata.

E finalmente a descida. Ufa, que alívio. Tomara que pudesse não os ver, não os ouvir. Mas vejo-os e ouço-os. Mais um pouco e estarei na estação. Oh, este vento, esta chuva que me embacia os olhos! Será chuva? Ou serão lágrimas? Lágrimas de raiva. Raiva pelo país onde vivo. Um país onde o mais alto representante da nação se vem queixar que 140 mil euros de reformas por ano não lhe chegam para as despesas. Onde uma classe política miserável, opulenta e anafada, alimenta a impotência à custa do sofrimento alheio.

Chego ao metro. Sei que não os vejo. Mas ainda os ouço. Não se calam. Imagino-os nas arcadas a rebentar de fome e de frio. Imagino-lhes as caras. E vejo a minha e a tua. E depois adormeço. E sonho com um amanhã melhor para o meu país.