quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Fantasmas


Meia-noite. Um vento forte mistura-se com a chuva gélida. Parece que se aliaram para me impedir de chegar depressa ao metro. Não importa. Daqui a pouco estarei numa carruagem quente e duas horas depois, a seguir a um jantar tardio, aguarda-me o aconchego dos lençóis térmicos e uma madrugada de conforto. Só mais um esforço. Mártires da Liberdade está a chegar ao fim e a Praça da República está ali, já ao virar da esquina.

Uma pequena recta e depois é a descer até à Trindade. E de repente ouço-os. Antes de os ver. É sempre assim, todas as noites. Discutem, como de costume. Elas com eles. Voz de vinho de pacote, do mais ordinário. Eles respondem, no mesmo tom. Adivinho-os num vislumbre sob as arcadas. Estugo o passo. Vejo-os, mesmo sem os ver, embrulhados nas enxergas. Cada vez são mais. E mais jovens. Fecho os olhos e sinto uma vergonha que me mata.

E finalmente a descida. Ufa, que alívio. Tomara que pudesse não os ver, não os ouvir. Mas vejo-os e ouço-os. Mais um pouco e estarei na estação. Oh, este vento, esta chuva que me embacia os olhos! Será chuva? Ou serão lágrimas? Lágrimas de raiva. Raiva pelo país onde vivo. Um país onde o mais alto representante da nação se vem queixar que 140 mil euros de reformas por ano não lhe chegam para as despesas. Onde uma classe política miserável, opulenta e anafada, alimenta a impotência à custa do sofrimento alheio.

Chego ao metro. Sei que não os vejo. Mas ainda os ouço. Não se calam. Imagino-os nas arcadas a rebentar de fome e de frio. Imagino-lhes as caras. E vejo a minha e a tua. E depois adormeço. E sonho com um amanhã melhor para o meu país.

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