sábado, 28 de abril de 2012

Ainda haverá amanhã?....

Está um Abril frio. Acho que Abril é sempre assim – húmido e frio. Mas este ano é diferente. Para pior. Muito pior. Estou numa esplanada de Brito Capelo a ruminar o jantar. O vento trazido pelo mar traz-me memórias do passado. Do que era esta rua há 30, 40 anos: pujante, cheia de gente e de vida, rica. Naufrago naquele constante cheiro a ensardinhado, nas operárias das conserveiras, no colorido das flanelas dos pescadores, na imensidão de peixeiras. Nada disso existe. Tudo foi destruído. Com uma simples assinatura de alguém acima de sério vindo dos Algarves e acampado em Belém. Sinto as mãos contra o espaldar da cadeira. Sinto o frio do metal, temperado pela humidade. Sinto raiva. Olho em volta. Devagar. Primeiro para a esquerda, depois para a direita. Entendamo-nos. Não quero atravessar a rua, mas isto é uma esplanada, embora seja uma esplanada ranhosa e eu esteja rodeado de ranhosos. Brito Capelo é assim – triste de dia e miserável à noite. Está a desfazer-se, não como um tumor que nos corrói aos poucos, mas como aqueles que nos trucidam de uma forma galopante. Todas as semanas as belíssimas fachadas dos anos vinte parecem cada vez mais velhas, os prédios mais feios. Os telhados abrem-se, os vidros partem-se, as paredes caem. E ficam assim. Em cacos. Os dias acordam tristes. Com lojas que fecham, com mais mendigos. E depois há a noite. Que me persegue. Uma após outra. Como esta. Ao meu lado um casal jovem. Muito jovem. Saíram há minutos de uma das pensões miseráveis que enxameiam agora a rua e onde têm tecto pago pela Segurança Social. Com eles um fedelho. Ainda no berço, mas que promete ser tão ranhoso como eles. A conversa do costume – as coisas estão más e não há trabalho. Como se alguma vez tivessem estado boas para eles ou se tivessem algum dia provado o sabor amargo do trabalho. Como se o fedelho algum dia pudesse seguir os estudos, essa coisa dos ricos. Percebo-lhes as prioridades – ir à Segurança Social para que lhes dêem dinheiro para pagar a luz, que o dinheiro que receberam do Estado não chegou nem para a droga. Adivinho-lhes a estratégia – levarem o fedelho mal embrulhado, que quanto mais miséria melhor. A vida é mesmo assim. Bebo o último golo do café. Saem mais arganazes das sarjetas. Aqui e ali serpenteiam pela rua, desengonçados. Ao encontro da próxima dose. De noite pode-se andar. Ninguém nota. Agora chove. Uma chuva miudinha. Gélida. À minha frente passa gente. Os ratos enfiam-se nos buracos. Fogem daquela mulher acabada de entrar nos trinta, com ar de pessoa normal. Das que ainda têm trabalho e comer em casa. Atravessa a rua com ar decidido e pára num umbral entre lojas. Baixa-se e fala com um dos rafeiros. Primeiro baixo e depois mais alto. Percebe-se que são conhecidos. Talvez familiares. Ele está zangado. Ela tenta explicar-lhe as razões por que não cabe no seu tecto. Ele fala-lhe dos sonhos desfeitos, das esperanças perdidas, de um país sem futuro. Da viagem que vai fazer no barco. Ou não. De ter o mar em frente e não partir. De vergonha. Por isso se esconde na noite. Mais à frente, casais de jovens ranhosos discutem. À porta de um café ranhoso. Eles atiram-lhes a cerveja que emborcam. Elas fogem, despedindo insultos. Passam por mim a cheirar a perfume barato. Ar reles, zangadas, cabelos escorridos de ratas de esgoto. Resigno-me. Os que prestavam partiram. Um milhão numa década. Levanto-me. Mais uma noite em Brito Capelo. Até amanhã. Se ainda houver amanhã.

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